Crónica de Jorge C Ferreira | Jogatanas desta vida

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Jogatanas desta vida

 

Este tempo cinzento. Tempo de arrancar dentes. Tempo de sentir de novo as dores mais antigas. As costuras do corpo a cerzirem novos pontos. Uma cantiga muito antiga e a voz enrouquecida de um cantor de bares nocturnos. Manhãs tardias e tardes sombrias. Folhas de árvores despidas. Amores calados. Agonias, vómitos de espanto. Uma tosse profunda, que um comboio que passa cala. Esta linha que divide a terra. Esta terra desterrada.

Há um poema que nos encanta. A beleza, o encanto de saber o sabor das palavras. Uma áspera forma de dizer. A voz que arranha as ideias. As ideias que nascem no fim da noite e acordam connosco. Quantos quadros pintados em noites sombrias? Quantas manhãs acordadas no fio de uma navalha? A barba por fazer. O cabelo a crescer. Sobra tempo às manhãs que comem as noites. Quantas dentadas me prometeste? A quantas promessas faltaste? Beleza, dor e desencanto. Tranças de cabelos de uma vida. Carrapitos, ganchos e travessas. Coisas de um tempo antigo. Os olhos inchados pelo choro da saudade. A poesia que viaja connosco e que em nós navega.

O mar encrespado. Ondas que sobem corpos e barcos afundados. As montanhas que nascem do fundo do mar. Agulhas de pedra. Pedras incendiadas. Uma ilha que aparece, um barco que encalha, pessoas que andam à deriva num susto que não passa. Quantas ilhas nos encantam entre um mar esmeralda. São acasos que acontecem. Prendas oferecidas por uma natureza sábia. Tenho uma amiga que conseguia estar dias inteiros no Faial, sentada num banco a olhar o Pico, e conseguia ver fadas a dançar naquele anel de nuvens que abraça o Pico. E que ninguém a desminta. Conta os avistamentos em poemas que nos deslumbram. Tempos de descoberta. Tempos de lembrar sonhos antigos. E de sentir o corpo a vibrar numa alegria inquieta.

jcferreira livro

Inquietas, também, as pernas de uma mulher sofrida. Os comprimidos que já não respondem ao sucedido. Nervos calcinados. A cabeça num rodopio. Os medos e os desastres. Um livro aberto numa certa página. Uma marca e uma frase sublinhada. Um livro muito antigo. As palavras de um enorme contador de vidas. Paramos, lemos e pensamos. Tudo nos parece extraordinário. As coincidências da vida. As vidas que nunca vivemos. Jogos de mesa, sem pano verde. A madeira e uma mesa pé de galo. A adivinhação que nos tenta intimidar. Cartas esquisitas. Um baralho malvado.

Vem-me à memória as jogatanas lá de casa. O meu avô e a sua vontade do desafio. Um papel e um lápis e as cruzetas dos resultados. O meu Avô também jogava na cova-funda de um galego. As mesas de pedra e serradura no chão. «Hoje, por causa das coisas, trago um baralho novo, a estrear.» Diz um parceiro desconfiado que as cartas cebosas do galego estavam todas marcadas. Tira o plástico, que tornava a caixa do baralho inviolável, e mostra as cartas novinhas em folha. Baralho aprovado, jogo começado. Rodada após rodada, o jogo ia continuando. Até o galego dizer que estava na hora, que já chegava de jogatana. O regresso a casa sempre penoso, entre conversas amenas e discussões de certas cartadas.

«Agora as jogatanas! Jogatanas de uma vida, penso eu.»

Fala da Isaurinda.

«E pensas bem. Jogadas que não esquecemos.»

Respondo.

«Ainda bem que tu não gostas de jogar.»

De novo Isaurinda, e vai, mãos erguidas para o céu.

Jorge C Ferreira Outubro/2024(450)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

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17 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Jogatanas desta vida”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Fernanda, minha Amiga. Tão bom o seu comentário. Sabe tão bem a quem escreve. A minha imensa gratidão. Abraço enorme.

  2. Maria Luiza Caetano Caetano

    Adorei o que li, meu querido amigo.
    Foi como se tivesse aberto. mais um livro seu e gostei muito deste capítulo. Tantas páginas que já ficaram para trás. Felizes os que tão bem sabem contar e o fazem, de uma forma tão bela. Vou continuar a ler, acho que ainda faltam muitas páginas para terminá-lo. A poesia não tem fim e a sua prosa, também não.
    Grata lhe fico, por me conceder esta benesse.
    Abraço grande.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza, querida Amiga. Tão bom ler os seus generosos comentários. Felizes os que gostam de ler e vivem o que lêem. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  3. Regina Conde

    Apetece-me dizer que me faltam as palavras para comentar a tua bela crónica. A tua assinatura em cada “jogatana”. Abraço meu Amigo de sempre.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina, minha Amiga de muitas jornadas. É tão bom estares aqui presente. Saber qye me lês. A minha gratidão. Abraço enorme

  4. Eulália Coutinho Pereira

    Excelente! Bela crónica com sabor a poesia. Jogatanas com que a vida nos surpreende. A vida construída passo a passo. Memórias que preenchem as noites de insónia e entram pelo amanhecer.
    O jogo da vida. Tal como o jogo de cartas. Perder ou ganhar. Tanto para refletir.
    Obrigada Amigo, pela excelência da sua escrita.
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália, minha Amiga que sempre segue as minhas palavras. O que eu agradeço a sua presença tão reconfortante. A minha enorme gratidão. Abraço grande.

  5. José Luís Outono

    Confesso-me estimado amigo, um leitor sempre sedento do teu criar único e bem apelativo.
    Desde o “ontem”, que “comandas” o hoje num estilo único onde a prosa e poesia convivem em frases vitaminadas … num traço ímpar do teu criar.
    Caro amigo que muito estimo e admiro, um GRANDE ABRAÇO de gratidão pela tua dádiva nestes parágrafos com a tua assinatura e verdade histórica do teu viver.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís, Poeta Que bom ter as tuas belas palavras neste espaço. Espero que saibas o quanto te agradeço. A minha enorme gratidão. Abraço grande.

  6. Mena Geraldes

    hoje vou usar adjectivos.
    surpreender-te ao contornar o teu retrato.
    como escrevinhador. poeta.
    vou deixar-me seguir os teus passos andarilhos.
    de pardal que não tem poiso.
    de nuvem que se passeia ao sabor dos solfejos
    do vento.
    da flor de dente-de-leão que suplica por assobios.
    hoje vou usar adjectivos.
    intitular-te.
    pôr-te rótulos como nos frascos das
    massas e dos açúcares. os
    mascavados.
    denunciar a tua autenticidade.
    o teu modo de seduzir.
    a tua ousadia verbal.
    poética
    imprevisível
    inesperada
    incerta
    súbita

    saltitas.
    não te fixas.
    fluis.
    deambulas.
    não te agradam portos seguros?
    és ilha que navega como tu próprio
    o dizes.
    e assim começas pelos dias enevoados.
    pelo outono que nos petisca os tornozelos
    pelas aguadas que se embrenham na pele.
    e logo te perdes nos tempos antigos
    na amiga que ainda avista fadas dançando
    nas nuvens que circundam o Pico.
    nas dores que atormentam
    nos preâmbulos da vida e no seu epílogo.
    e terminas.
    contando as jogatanas na casa do teu avô.
    e assim vamos…
    pulando de frase em frase. de um escrito
    inédito e surpreendente
    como fazem as abelhas que
    buscam o pólen das flores.
    e nos dão, em troca. mel.
    mel.
    é o tu nos ofereces.
    como se fosse natural….

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Escreve o que quiseres mas escreve sempre. O que escreves tem luz, incendeia vontades. Mais um poema maravilhoso. Sabe tão bem. A minha enorme gratidão. Abraço imenso.

  7. Mena Geraldes

    hoje vou usar adjectivos.
    surpreender-te ao contornar o teu retrato.
    como escrevinhador.poeta.
    vou deixar-me ir e seguir os teus passos andarilhos. de pardal que não tem poiso.
    de nuvem que se passeia ao sabor dos solfejos do vento.
    da flor de dente-de-leão que suplica por assobios.
    hoje vou usar adjectivos.
    intitular-te.
    pôr-te rótulos como nos frascos das massas e dos açúcares. os mascavados.
    denunciar a tua autenticidade.
    o teu modo de seduzir.
    a tua ousadia verbal.
    poética.
    imprevisível.
    inesperada.
    incerta.
    súbita.
    saltitas.
    não te fixas.
    fluis.
    não te agradam os portos seguros.
    és ilha que navega. como tu próprio dizes.
    e assim começas pelos dias enevoados.
    pelo outono que nos petisca os tornozelos.
    pelas aguadas que se embrenham na pele.
    e logo te perdes nos tempos antigos.
    na amiga que avista fadas dançando nas nuvens que circundam o Pico.
    nas dores que atormentam.
    nos preâmbulos da vida e no seu epílogo.
    e terminas
    contando as jogatanas na casa do teu avô.
    e assim vamos…
    pulando de frase em frase. de um
    escrito inédito e surpreendente, como fazem as abelhas que
    buscam o pólen das flores.
    e nos dão, em troca, mel!
    mel.
    é o que tu nos ofereces.
    como se fosse natural…

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Escreves sempre bem. Tão bem. Que encanta. Abraço-te.

  8. Isabel Luis

    Os jogos desta vida são constantes. E todos nós somos peões neles. Somos utilizados pela política, pelos que efectivamente nos governam, pelo patronato, pela sociedade em geral, pela família por vezes e mais grave ainda, pelos amigos, aqueles a quem escolhemos para serem família especial. Quantas vezes? !
    Bonito este teu texto sobre o tema. Nunca te senti jogador e, como tal, classifico-te peão como eu…
    Beijo-te com carinho.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Que bom estares aqui. Sabes que sempre estive, ou tentei estar, ao lado dos mais fracos. Sabes do nosso tempo. Da luta. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  9. Fernanda Luís

    Li e reli..
    “Jogatanas”, bela crónica tão cheia de poesia.
    Cada frase me obriga a parar, a reler, a admirar.
    Excelente construção. De mestre.
    Parabéns Jorge.
    Obrigada
    Abraço

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